A AMNÉSIA
O BANHO
UM ELEVADOR PARA O CÉU
O ÉDEN NÃO É ETERNO
O COLECIONADOR DE ESPIRITOS
1 AMNÉSIA
Matar o tempo é quase um passatempo nacional.
Fazê-lo nas enormes filas de trânsito em direcção à grande cidade é
obrigatório.
Muitas vezes num simples pairar curioso, outras tentando adivinhar as
vidas que ali se cruzam a cada instante.
O som altissimo do rádio mal deixa perceber as palavras com que Alice
tenta comunicar com o marido. O carro é mais um de entre os muitos que me
rodeiam. "Logo não te esqueças de ir mais cedo buscar o miúdo à ama."
"O quê? "Alice nunca percebeu muito bem se o marido punha o rádio tão
alto para ouvir música ou para não a ouvir a ela. Tantas horas de tantos
cansaços vão aos poucos minando as pontes entre as pessoas e a partir de algum
tempo a capacidade de sobreviver é mais fácil sendo cada um por si do que num
qualquer colectivo asfixiante. Alice levanta-se todos os dias às cinco horas da
manhã, arranja-se, trata do filho mais novo, prepara o pequeno almoço e quando
tem tempo ainda dá uma pequena arrumação na casa. O marido esse fica na cama
até ao limite possível e levanta-se quase sempre perto das seis horas. Às seis
e um quarto, depois de acordar o filho mais velho e de lhe dar as últimas
indicações saem de casa rumo ao inferno.
Primeiro a ama para deixar o filho, depois a estrada..."E antes de ires
buscar o miúdo tens que ir buscar as análises. Não te esqueças, porque amanhã
tenho que ir ao médico mostrar os resultados. "O grunhido/resposta do
outro lado é mais que satisfatório, porque a mais das vezes a resposta é o
silêncio senão um peremptório "cala-te que estou a ouvir as noticias.
"Outra vez! Não entendo como é que estas pessoas aguentam isto todos os
dias. Quilómetros e quilómetros de filas, horas e horas todos os dias. Mas como
é que as pessoas aguentam? Pergunto-me, mas no mesmo instante sinto-me idiota
com a pergunta. Como aguentam? Da mesma maneira que eu há tanto tempo a fazer
todos os dias a mesma pergunta. "Pronto mais um avariado. Estúpido. Devia
haver multas para quem deixa avariar os carros. Os prejuízos que causa a tanta
gente uma simples avaria. Devia ser proibido. "Todos os dias milhares de
pessoas se amaldiçoam umas às outras sem o minimo conhecimento de causa das
circunstâncias exactas em que acontece cada coisa.Os imprevistos, o
imponderável, a situação psicológica, etc.,etc.. Face a cada situação concreta
todos são lestos a apontar causas, culpados, soluções. "Filho da puta!
Chega para lá essa merda. Pensas que a estrada é só tua? Olha aquele a ver se
me 'come'. Tenta que já vez o que te acontece! "Francisco tem voo marcado
para as dez horas, mas pelo sim pelo não resolveu sair de casa às sete horas.
Há uma hora que está na fila, mas a experiência de todos os dias diz-lhe que
vai conseguir chegar a horas."A partir dali começa a andar melhor. Às nove
horas estou lá."Mais que uma afirmação a frase dita em surdina para si
mesmo é mais um auto-conforto que uma certeza. Ou, pelo menos, é uma certeza só
para os próximos minutos.Se daqui a quinze minutos não estiver onde mentalmente
acha que deve estar, então tem de começar a procurar uma nova certeza.
"Deve ser um acidente.Logo que passe o acidente, isto começa a andar."E
assim sucessivamente, num adiamento continuado mas necessário para manter o
equilibrio.
Para António, com uma vida vazia, perdido num emprego cinzentão, sempre
igual, os problemas são os mesmos, mas outros.Com a adrenalina sempre no
minimo, só na confusão do trânsito consegue fazê-la subir.Não por estar
estupida e ordeiramente numa fila infindável e lenta, mas por estar
permanentemente a tentar furá-la.Cada lugar conseguido à custa de uma qualquer
esperteza é uma vitória.Correr riscos e ultrapassar os limites permitidos são
as suas pequenas lutas do dia. Infelizmente as únicas.Coleciona multas como se
fossem troféus e faz gala disso.Quando, por qualquer motivo não há confusão,
chega demasiado cedo e como desconhece outras maneiras de matar o tempo fica simplesmente
dentro do carro... a matar o tempo!
Todos vêem tudo de acordo com a sua visão egocêntrica da realidade.Os
problemas de cada um deixam de existir para passar a ser todos os problemas.Não
são só os de cada um, mas sim, os de cada um multiplicados por todos.Se um tem
pressa acha que todos deviam ter pressa; se anda devagar todos deviam andar
devagar; se está deprimido todos deviam entender isso e adaptar-se; se está
alegre todos deviam estar alegres.
Fazer parte do mesmo atropelo diário transforma as pessoas solidárias da
pior maneira possível, ou seja, segundo a visão unilateral de cada um.
Sou um espectador atento da luta do dia a dia que se trava em cada
instante para tentar chegar o mais cedo
possível à grande cidade.Uma atitude, um gesto ou um simples olhar são por
vezes prenuncio de raivas mais profundas e quantas vezes simples escapes para
lutas interiores mais complexas e sem solução.
Com tanto tempo só para mim, por vezes, não consigo evitar o assalto dos
meus fantasmas: as ambições, os sonhos, os desejos mais secretos, as dúvidas,
as angústias ou as certezas mais inabaláveis.Quando não tudo ao mesmo tempo.
Que algumas vezes iludo em inócuos exercicios mentais.Tentando, por
exemplo, adivinhar os mundos dentro de cada mundo que é um carro; mundos que
não consigo imaginar senão por entre vidros embaciados.
"Aquele tão contente logo de manhã.Será a mulher?Hum!.Deve ser a
amante que vai buscar todos os dias ao sitio do costume."
"E aquele!Que carranca.Parece que nem conhece a mulher que vai ao lado.Deve
ser a legitima."
"Aquela vai com ar de fim do mundo.Terá alguma doença?Será que tem
Sida?"
“E aqueles!Que lindo!Quanta ternura conseguem extravasar!Aquilo é mesmo
amor!Que inveja!"
Agora reparo.Isto hoje está mesmo mau.Já aqui estou parado para aí há
quinze minutos.Não anda de vez.
Desligo o carro e deixo-me embalar. Aos poucos, perdido em mil anseios
volto ao meu sonho; é um sonho de todas as noites que depois trago para o dia e
tranporto comigo em cada instante...dois corpos
entrelaçados numa comunhão perfeita de corpo e espirito frente a uma
lareira sempre acesa, rodeados por milhares de velas
cintilantes...e....mas...que zumbido tão estranho...
Primeiro é uma espécie de zumbido intenso a aumentar, aumentar,
aumentar, até deflagrar num estrondo enorme, como se mil sóis tivessem
rebentado sobre o universo.Um instante apenas!Mas tão fulminante que pareceu
durar uma eternidade.
Um instante impensável em que aconteceu uma daquelas coisas que não
podem acontecer nunca.
Vivemos tão agarrados às nossas verdades inabaláveis, às nossas certezas
irrefutáveis que quando são postas em causa a primeira reacção é de
incredulidade. Quer em relação às coisas do dia a dia, quer mesmo em relação às
mais intimas, àquelas que só nós é que sabemos que existem.Mas, que fazer
quando outra realidade tão forte e tão óbvia se impoe sem remissões?
A verdade é que naquele instante todas as pessoas deixaram de saber
conduzir.Literalmente. Todas. Todas as faculdades se mantiveram intactas, a
inteligência, a capacidade de agir, mesmo o conhecimento dos sinais de
transito, à excepção da capacidade de conduzir.E bastaram mais alguns instantes
para que se instalasse o caos e a destruição.
A primeira reacção simultânea foi de "cuidado!", "olha
aquele!", sem reparar que o outro era cada um de nós.Logo de seguida (se a
expressão se pode usar, dado que foi tudo tão instantâneo!), incredulidade,
espanto, terror!
No instante em que perceberam ter perdido o controle dos carros, os mais
atentos tentaram fazer alguma coisa.Travar, por exemplo.Só que não sabem como
fazê-lo. Uns, por pura sorte, conseguiram ensaiar uma travagem, mas outros
aceleraram, fizeram pisca-pisca, meteram velocidades despropositadas, guinaram
para qualquer lado, ou simplesmente apitaram.Os que, por sorte, tinham conseguido
tomar a atitude correcta foram de imediato apanhados na onda de todos os outros
de nada lhes valendo a sorte inicial.
O que aconteceu de seguida é indescritível.
Todos os que tinham espaço livre à frente, seguiram em frente.Onde quer
que isso fosse: outro carro, a parede, o descampado, o rio,etc.,etc..Os que os
seguiam foram parando em tudo o que estava à frente, noutros carros, nas
protecções laterais das estradas, onde quer que fosse.Se de tragédia não se
tratasse poder-se-ia dizer que o mergulho colectivo no rio de centenas de
carros foi único e espectacular.
Pouco mais de vinte segundos foram suficientes para transformar tudo em
redor num enorme cemitério de pessoas e carros. Os gritos dos sobreviventes a
uma só voz provocaram um coro terrível, capaz por si só de arrepiar o mais
insensível. O sangue misturado com o combustível derramado em muitos casos a
arder criou no ar um cheiro intenso de... de...de inferno. È. Se existe
inferno, então aqui, neste momento é o inferno.
Um dos carros que consigo ver a voar em direcção ao rio é o de
Alice.Afinal o marido já não vai ter que ir buscar análises nenhumas.E muito
menos buscar o miudo à ama.
O Francisco também não vai apanhar nenhum avião esta manhã.Está com o
rosto desfigurado do lado de fora do vidro da frente do carro.
A amante sorridente não vai ser obrigada a explicar ao marido porque é
que ia naquele carro com aquele homem em vez de ir na carreira 118 que naquela
manhã uma vez mais fazia a ligação à grande cidade.A carreira 118 que, quase
por milagre escapou incólume à tragédia. Castigo divino para amores à margem
das Suas leis?
O primeiro pedido de socorro foi recebido no serviço de emergência
médica poucos segundos após o acidente. O paramédico que estava de prevenção
correu célere para a viatura e de repente estancou atónito. Estava parado em
frente à ambulância e não sabia o que fazer para a pôr em movimento.Ao fim de
intenso esforço intelectual conseguiu pô-la a funcionar e arrancou veloz...
contra a primeira parede que lhe apareceu à frente.
O que parecia ser um fenómeno localizado e circunscrito, era afinal
geral.Ninguém sabia conduzir. Ninguém fazia a minima ideia de como utilizar os
veiculos motorizados.Que fazer?Que decisões tomar sem poder contar com os
imprescindiveis veiculos motorizados?
Reunido de emergência com os poucos elementos que foi possível reunir(só
os que moravam perto e não se deslocavam de automóvel no instante da amnésia
colectiva) o governo tentava tomar algumas medidas.Mas cada uma delas
pressupunha a utilização de veiculos motorizados e tinha que ser de imediato
posta de parte.Depois de muitas discussões foi decidida a única coisa que
parecia razoável no momento, dado que todos os meios médicos móveis estavam
dependentes de tais veículos : arranjar todos os animais de tracção possíveis e
adaptá-los para puxar ambulâncias e outros veículos de emergência.
O primeiro veículo deste tipo saiu do hospital central seis horas depois
da tragédia.Neste intervalo de tempo tinham morrido por falta de assistência
milhares de pessoas, enquanto os gemidos de dor em toda a grande cidade se
confundiam agora num só.O veículo saiu, mas não andou mais que umas poucas
dezenas de metros.Logo à saída da primeira curva o trânsito estava bloquedo por
carros acidentados.O veículo deu meia volta e tentou um percurso alternativo,
mas a sorte foi a mesma.Tentou outra vez.E outra.E outra.Mas para onde quer que
tentasse o cenário era sempre o mesmo.Carros e mais carros de encontro uns aos
outros.E feridos.Muitos feridos.Então foi decidido esquecer o destino de origem
e começar a tratar de imediato aqueles feridos.O mesmo fizeram todos os outros
carros que entretanto tentaram sair de outros hospitais.E eram tantos os
feridos que num ápice todos os meios médicos disponíveis se esgotaram nas zonas
circundantes dos hospitais.
Ao principio da tarde ainda não era conhecida a verdadeira dimensão da
tragédia, dado que cada zona mais ou menos restrita só tinha conhecimento da
sua e da situação em que se encontrava
Passadas as primeiras horas de horror e estupefacção de imediato se
iniciaram aquelas vagas que ninguém sabe como começam nem de onde vêem, mas que
de imediato se generalizam.Primeiro as pilhagens.Na grande cidade a horda de
excluidos que normalmente só é visivel na noite profunda a dormir onde calha
viu de imediato maneira fácil de satisfazer as suas necessidades sem dificuldades de maior.Os poucos agentes
de autoridade que tentaram intervir foram mortos em poucos instantes.Em minoria
em cada zona não podiam ser socorridos pelos colegas.Seis horas foi quanto
bastou para que a lei e a ordem quase deixassem de existir.Ao fim do dia já
existia mesmo uma outra lei e uma outra ordem.A que surgiu naturalmente da
desordem.
Os pobres e ordeiros cidadãos sem a capa da autoridade a protegê-los
tornaram-se em poucos instantes presa fácil daqueles que horas antes nem se
atreveriam a dirigir-lhes a palavra; daqueles que em cada dia ignoravam
ostensivamente e a quem quando lhes apetecia concediam o dom da esmola.É fácil
prever quanta revolta existia em toda aquela gente, quão fácil foi a explosão
de anos e anos de submissão, maus tratos, exclusão e aproveitamento.Primeiro
desapareceu tudo o que estava dentro de muitos carros entretanto abandonados
pelos donos.E esta foi a parte mais pacifica de todas.Depois começou uma lenta
mas progressiva caminhada de inversão da ordem estabelecida.A operação mais
rápida e espantosa consistiu na confirmação das moradas dos mortos pelos sem
abrigo que, de imediato, ocuparam as casas.Situação que, em alguns casos,
provocou novas mortes ou simplesmente novos desalojados.Quando os ocupantes
chegaram às casas supostamente desabitadas depararam-se com pessoas idosas,
inválidos e crianças e conforme a disposição do momento ou os puseram na rua
ou os mataram.Qualquer protesto era em
vão.Protestar junto de quem?Chamar quem em auxilio?Ao fim de algum tempo as
ruas estavam cheias de novos desalojados, mais bem vestidos é certo, mas também
mais indefesos e com poucas possibilidades de sobrevivência.Com a inversão de
valores a força dos fracos veio ao de cima, enquanto foi por demais evidente a
fragilidade na luta pela sobrevivência da sociedade organizada e dependente (da
policia, das regras, dos serviços, etc.etc.)
A seguir tratou-se de encher as despensas.As pilhagens que tinham
começado logo após a tragédia aumentarama a cada instante até transformarem a grande cidade e os arredores
num enorme hiper-mercado onde valia tudo.Aqui aconteceu um fenómeno curioso
revelador de quão ténue é a linha que separa a lei e a ordem da anarquia e da
desordem.Os trabalhadores dos estabelecimentos comerciais pilhados que
começaram por se opor aos assaltos (alguns foram mortos por isso!), à medida
que a anarquia se instalava foram-se passando para o outro lado de modo que
passado algum tempo estavam todos do mesmo lado.Funcionou em pleno a máxima
"se não os podes vencer junta-te a eles"...
...súbito um novo zumbido começa a entrar nos meus ouvidos de tal
maneira forte que quase me fere os timpanos.Um zumbido que,à semelhança do
primeiro vai aumentando de intensidade, aumentando, aumentando, até se
transformar num coro desafinado de ... de... buzinas.
Acordo ao som estridente de buzinas e
insultos.
À minha frente uma enorme estrada
vazia.
Atrás uma fila interminável de carros a buzinar.
Sobressaltado e envergonhado retomo a marcha rumo à realidade sufocante
e tantas vezes sem sentido.
2 BANHO
Acordava sempre duas vezes.
Quando acordava e quando acabava de tomar duche.
Aquele dia não foi excepção e,
acabado o duche retemperador, está prestes a acordar pela segunda vez.
Acaba de tirar o champô, pega na toalha e limpa-se seguindo o ritual
subconsciente de todos os dias: primeiro a cara, depois as costas, o cabelo, os
pés, de novo o cabelo, por fim o resto dos pés até sair do banheiro.
Todos os dias somos praticantes de mil e um rituais que a mais das vezes
nos passam despercebidos.
Mas… porque estou a demorar tanto tempo a secar?
Parece que tenho a água agarrada ao corpo.
Esfrego mais um pouco o cabelo, limpo os pés de forma mais intensa…
mas…o que é que se passa? Não consigo limpar-me…
“Oh! Mariana, esta está boa! Não consigo tirar a água do corpo!”
“Não consegues? Limpa-te!”
“É o que estou a fazer, mas não consigo!”
“Não pode ser! Estás cada vez pior…”
Há coisas que acontecem sempre da mesma maneira, que têm uma sequência
de tal modo lógica que se tornam impensáveis de qualquer outra forma.
Está frio, temos frio; está a chover molhamo-nos; travamos bruscamente
somos atirados para a frente, etc., etc., etc.
Tomamos banho, pegamos na toalha,
limpamo-nos e secamos.
Até hoje!
“Estou pior o quê? Estou farto de me limpar e continuo tão molhado como
quando saí do duche. Se não acreditas anda cá ver.”
Mariana não está com muita disposição para brincadeiras, mas mesmo
assim, como quem não quer a coisa, aproxima-se da casa de banho e espreita por
uma frecha da porta.
Ao princípio não nota nada de anormal, mas passado pouco tempo percebe
que há alguma coisa que não está bem.
O marido está mesmo a limpar-se, mesmo com alguma brusquidão, mas a
verdade é que o corpo continua molhado.
“Mas o que é que andaste a fazer para deitares tanta água? Estiveste a
lavar-te por dentro ou quê?”
“Não brinques. Estou a começar a ficar preocupado.”
“Não estou a brincar. Vá toma lá
outra toalha e vais ver que te secas num instante.”
Obediente pega na toalha e repete os movimentos anteriores, a principio com a sensação de estar a ter
algum sucesso, mas cedo percebe que nada mudou.
“Não consigo. Continuo molhado!”
Os primeiros momentos são de incredulidade e o espanto. Impotência.
Desorientação.
Fazer o quê?
“Anda aqui um pouco para junto da
janela que isso já passa.”
Aproxima-se da janela que por entre os cortinados deixa passar uns
ténues raios de sol e espera. Espera mais um bocado. Ainda outro.
Não acontece nada.
Olham um para o outro procurando em vão
explicar o inexplicável.
O que é que podem fazer?
João começa a ficar com frio e coloca uma manta pelas costas, mas
rapidamente esta fica encharcada com
água, o que faz aumentar ainda mais o desconforto.
“Não sei que fazer, estou a ficar com muito frio. Ajuda-me!”
“Como? O que é que queres que eu faça?”
“Sei lá. Faz qualquer coisa!”
“Temos que pedir ajuda. Vou ligar para o 112.”
“Está? É do 112? O que se passa é o seguinte…”
“E se se deixasse de brincadeiras? Não sabe
que enquanto estou a perder tempo com brincadeiras pode haver alguém mesmo doente que não consegue aceder ao serviço?”
que enquanto estou a perder tempo com brincadeiras pode haver alguém mesmo doente que não consegue aceder ao serviço?”
“Mas não estou a brincar!”
“Não está a brincar? Então está a fazer o quê? O seu marido tomou banho
e não se consegue limpar? Brincadeira e estúpida! Vou ficar com o seu número e
comunicar a quem de direito. Bom dia!”
“Espere, espere. Por favor não desligue. Não estou a brincar. Não sei o
que se passa nem consigo qualquer explicação, mas a verdade é que o meu marido
tomou duche e nunca mais conseguiu tirar a água do corpo, faça o que fizer. E o
pior é que está a ficar cada vez com mais frio e já não sei que fazer.”
O apelo foi tão pungente que conseguiu convencer a pessoa do lado da
central.
“Vou enviar uma equipa e para seu bem espero mesmo que não se trate de
mais uma brincadeira.”
Quando a ambulância chegou com os paramédicos João fazia exercícios de
ginástica de forma cada vez mais violenta, para fazer desaparecer o frio que
aumentava a cada minuto que passava.
“Onde é que está o doente.”
“Aqui, aqui. Sou eu!”
“É você? E está a fazer ginástica?
Afinal o que é que se passa?”
“Não estou a fazer ginástica nenhuma! Estive a tomar banho e estou a
tentar secar-me.”
“E porque é que não se limpa a uma toalha, como toda a gente?”
“Não percebe? Não me consigo limpar.Já quase há duas horas que tomei
banho e não me consigo limpar!”
“Sabe que gozar com os serviços de emergência pode ter consequências
graves?”
“Mas qual brincar, qual quê? Não vê que isto é muito grave? Estou a
ficar gelado e se não me secar rapidamente vou acabar por morrer de
hipotermia.”
Ainda hesitante e desconfiado o médico aproximou-se mais de João e
constatou que de facto João estava todo molhado e parecia não haver qualquer
alteração. Foi buscar uma toalha aos equipamentos e pediu-lhe que se limpasse à
mesma.
Não foi preciso passar muito tempo para se aperceber do óbvio. Por mais
que esfregasse o corpo continuava molhado sem a menor alteração.
Ante o insólito ficaram sem saber o que fazer.
“E agora? O que é que fazemos?”
Olharam uns para os outros incapazes de qualquer decisão.
“Precisamos pensar com muito cuidado, mas rapidamente. Acredito que seja
uma situação nova para todos. Alguém tem alguma sugestão de aplicação
imediata?”
“Um secador. Vamos arranjar
vários secadores e utilizá-los até evaporar toda a água.
“Boa ideia. Vamos tentar.”
“A senhora tem secadores em casa?”
“Tenho um!”
“Um não é suficiente. Vá á loja de electrodomésticos mais próximos e
compre quatro secadores de cabelo, dos mais potentes que houver. Mas rápido
porque o seu marido deve estar a ficar gelado”
“Não estou a ficar. Já estou!”
Nunca trinta minutos demoraram tanto a passar.
Logo que Mariana chegou com os secadores, cada um pegou num e foi uma
azáfama a tentar secar o corpo de João. Mas passados os primeiros momentos de
expectativa, logo foi visível que o resultado iria ser o do costume: João
continuava molhado e cada vez com mais frio.
Incrédulos e impotentes olharam uns para os outros.
Fazer o quê?
Entretanto João sentia cada vez mais frio e começava a ter dificuldades
em respirar.
Até que alguém teve mais uma ideia.
“Enquanto não encontramos uma solução definitiva temos de encontrar uma
provisória, antes que o homem morra para aí de frio. Vamos encher uma banheira com água bem quente e metê-lo lá
dentro de para ver se conseguimos manter a temperatura normal.”
A banheira foi cheia de água bem quente e João colocado lá dentro.
Passado pouco tempo sentiu-se reconfortado e começou a respirar mais
pausadamente.
Entretanto multiplicavam-se as consultas para tentar não só explicar o
fenómeno, mas principalmente resolver o mesmo.
“Vamos pensar com calma. O que é que pode estar a provocar isto? Alguém tem alguma ideia?”
Silêncio.
Ninguém fazia a mínima ideia!
Muitos silêncios adiante estavam exactamente no ponto onde tinham
começado, isto é, em lado nenhum porque a lógica ali não fazia sentido.
Aquele era um fenómeno para além
de qualquer lógica.
Entretanto o conforto inicial de estar numa banheira de água quente começava
a dissipar-se e mesmo assim João recomeçava a sentir o desconforto de estar
molhado. Já não propriamente frio, mas desconfortavelmente molhado.
E começava a desesperar.
Então João acordou meio zonzo, com água quase até à boca.
Estava deitado na banheira, onde tinha adormecido.
Jurou solenemente a si mesmo que tinha sido a primeira e seria a última
vez que substituía o duche pelo banho de imersão.
3 ELEVADOR PARA O CÉU
Apesar de um estatuto especial relativo a entradas e saídas João
apanhava sempre à mesma hora o mesmo elevador para o local de trabalho. Não
sabia bem porquê , (ou talvez soubesse
muito bem!).
Enquanto apregoava o contrário, João gostava mesmo era de rotinas. De
rotinas e da Elisa que trabalhava no 5º andar e que às vezes vinha vestida de uma maneira
que fazia com que o seu indice de produtividade baixasse perigosamente e se
limitasse pensar tesouros imaginários por baixo do seu vestido curto.Também
havia cor dos olhos. A expressão do
olhar. Enfim havia um mundo que só se atrevia a imaginar.
Fosse pelo que fosse, ou simplesmente pela soma de todas as coisas a
verdade é que entrava e saia do emprego sempre à mesma hora, ou seja quase
sempre à hora a que entrava e saia a Elisa.
Coincidências cada um arranja as que lhe convêm.
Aquele era um dia igual aos outros e nada fazia prever que as coisas se passassem
de maneira diferente. E há hora do costume João e Elisa entraram no elevador.
Como todos os dias a fingir que não se viam, mas, como todos os dias a
não perderem um gesto um do doutro até ao momento em que Elisa saia e dizia com voz desfalecida “até logo”.
O que aconteceu a João naquele momento exacto nunca ficou muito bem
explicado. E muito menos o que aconteceu dentro de si.
Aliás, de forma concreta, ainda hoje não sabe bem o que aconteceu. Como
é que Elisa saiu? Como é que o elevador voltou a andar?
Um lado tem sempre um oposto, mas em cada momento para cada um de nós só
um lado existe.
Em raros momentos da vida do
cosmos é possível a alguém ver os dois lados e nesse instante pode mudar de
lado sem se aperceber disso. Foi o que aconteceu naquele momento. Enquanto
Elisa saia normalmente do elevador, João deu um salto temporal e embarcou no Elevador
do Céu.
Ninguém sabe porque lhe chamam assim, como ninguém sabe se exixte mesmo.
O que toda a gente sabe é que desde sempre, desde que o homem é homem, algumas
almas conseguiram apanhar o elevador e foram para o paraíso, enquanto uma
grande maioria não conseguia e ia não se sabe para onde; toda a gente lhe
chamava Inferno, mas ninguém sabia o que era nem mesmo se existia.
Então como é que sabiam? Sabendo!
João.
Ocupado a tentar ver Elisa sentiu de repente uma luz semelhante a um
flash de mil sóis que o obrigou a fechar
os olhos.
Quando os abriu estava sozinho no elevador.
“Estranho não vi a Elisa sair. Bem, vamos à vida.”
Carregou no botão do 7º andar e o elevador arrancou como todos os dias.
Mas não parou como todos os dias. Antes pelo contrário. Impulsionado por uma
força invisível ganhou velocidade supersónica e só parou ao fim de uma hora e
de um incontável número de andares.
Quando João acordou de uma espécie de sono hipnótico e olhou para o
relogio não quis aceditar.
Tinha passado uma hora
Atónito esfregou os olhos para confirmar se estava acordado e perceber
onde se encontrava. Não tinha duvida que era o mesmo elevador, mas, ao mesmo
tempo sabia que era outro. Se dúvidas houvesse o dourado da porta ao seu lado
esquerdo era suficiente para as esclarecer. Porque a porta anteriormente era do
lado direito e igual ao resto do elevador. Mas o desenho erótico que alguém
fizera no lado esquerdo do tecto mantinha-se lá. Era ainda o velho elevador,
mas também já era o novo elevador.
Mas o que significava tudo isto?
Procurava desesperadamente um
botão salvador quando a porta dourada
desapareceu e o elevador foi invadido por uma espécie de névoa de um
branco imaculado que aos poucos se foi dissipando deixado emergir uma figura
magnifica, toda vestida de branco, com uma imaculada barba branca. Então mesmo
sem falar, a voz da figura fez-se ouvir dentro da sua cabeça.
“Foi dificil a jornada?”
“O quê? Onde é que eu estou?”
“Calma, calma! Em breve tudo será explicado. Mas primeiro precisa
descansar porque foi sujeito a um esforço muito grande.”
“Mas o que é que está a acontecer?
Como é que vim aqui parar?”
“Não se lembra de nenhum episódio importante na sua vida
recente?
“Lembro-me de ter entrado no elevador para ir trabalhar e...”
“...e?”
Então, como se estivessem a lavá-lo por dentro, as ideias começam a misturar-se
numa massa uniforme até serem uma só ideia – LIMPEZA E PUREZA!
Ao fazê-lo passou a ser capaz de falar mentalmente e, por isso, a
ser incapaz de mentir
“Continue. Tente lembrar-se. De qualquer pormenor ”
Incapaz de articular palavra olhou em redor como que a pedir socorro e
então, por detràs de uma espécie de escaparate, viu a primeira página de um
conhecido jornal. Mas era um jornal especial. Eram três exemplares e tinham os
três a imagem de João a ocupar quase toda a página, mas o que chamou a sua
atenção não foi isso. Foi o facto de os
três jornais, todos do mesmo dia, terem legendas diferentes.
O primeiro dizia:
Joao Alberto conhecido Financeiro da nossa praça foi vitima de um
acidente e ficou ferido sem gravidade.
O segundo dizia:
João Alberto conhecido financeiro da nossa praça foi vitima de um acidente
e ficou ferido com gravidade.
O terceiro dizia:
João Alberto conhecido financeiro da nossa praça foi vitima de um
acidente e faleceu ao ser trasnsportado para o hospital.
O que é que aquilo queria dizer? Ele era só um! Espera! Claro! De
imediato não percebeu todo o sentido, mas sentiu que, de algum modo havia ali
uma escolha a ser feita.
Sempre pensara que na morte não havia escolha, mas parece que não era assim
tão simples e no fim tinha de ser ele a decidir o seu destino.
Porquê? Isso não era tarefa de Deus? Quem era o velho de barbas brancas à porta do elevador?
Então uma nova porta se abriu e viu-se perante uma assembleia de velhos
de barbas brancas. Todos sentados numa espécie de anfiteatro onde pareciam
estar sentados, apesar de náo se verem quaisquer cadeiras.
Em frente uma enorme cadeira vazia.
Sentiu dentro de si, dentro do seu cérebro limpo de qualquer lixo, que
lhe fizeram sinal para que se sentasse.
Sentiu-se intimidado.
Sentou-se.
Ouviu dentro de si a primeira pergunta.
“Sabe o que está aqui a fazer?”
“Não!”
“Nós somos os Anjos da Guarda e
estamos aqui para o ajudar a decidir da sua vida. A sua e a de todos os indecisos.”
“Então por isso é que eram os três jornais!”
“Claro!”
“E que é que vocês fazem”
“Nós estamos aqui para aconselhar. Quando a hora chegar a decisão será sempre
vossa, mas vocês são seres indecisos (fazeis parte de uma Criação que teve
muitos defeitos), mas para os encaminharmos para o caminho certo precisamos que
estejais convictos do que quereis. Só assim vos podemos ajudar. Porque senão
decidem com clareza podem ficar encalhados milhares de anos...”
Uma luz ao fundo aumenta de tamanho enquanto parece aproximar-se
lentamente. De repente um novo flash e...acorda na cama do hospital. Aos poucos
recobra a consciencia por completo.
Elisa.
No dia seguinte Elisa subiu sozinha no elevador.
“Como é que estará o meu companheiro do elevador? Ontem quando desmaiou
pareceu não ficar muito bem. AInda tão novo e teve um ataque de coração daquela
maneira. Será que devia ir vê-lo ao hospital? É verdade que nunca tivemos
qualquer conversa para além dos cumprimentos habituais. É verdade, mas sinto
que os nossos silencios se tornaram sentidos. E não só para mim. Logo vou vê-lo
ao hospital.”
Sem saber bem porquê João passou
o dia a pensar em Elisa. E a lembrar-se do sonho enquanto esteve inconsciente.
Gostava que ela o visitasse no hospital. Mas porque havia de o fazer se durante
tantas viagens se limitaram aos cumprimentos de circunstância? Ou foi mais do
que isso. Agora que se
recorda que depois da limpeza a unica coisa que
ficou claramente dentro da sua cabeça foi a imagem de Elisa.
Dentro de si alguém aconselhou. O futuro está cheio de impossiveis
atingíveis. Só é preciso não desistir nunca.
Então a porta da enfermaria abriu-se lentamente e uma Elisa hesitante
aproximou-se da sua cama. Não disse nada. Agarrou-lhe primeiro na mão, depois
aproximou-se mais e beijou-o na boca de forma absoluta e única. João
correspondeu como se aquele beijo lhe devolvesse a vida que tinha perdido e já pensava
que não existia.
Era o principio de algo novo intenso, total, único e sem reservas.
Por instinto João olhou para cima e ainda conseguiu ver de fugida o
rosto do seu Anjo da Guarda, que sem dúvida estava a sorrir de contentamento.
Tinha menos um encalhado às portas do Céu!
O que chamamos as voltas da vida, a mais das vezes são a própria vida. E
mesmo que assim não seja, as voltas serão sempre as culpadas pelas reviravoltas
que a vida dá.
Se somos levados a lugares ou situações impensáveis, a alguns que nem
nos sonhos mais inverosíveis pensariamos ir algum dia, aí não temos dúvidas em
culpar as voltas da vida.
E a verdade é que com ou sem culpa as voltas da vida tanto nos podem
levar ao pico agreste do monte distante
como ao fundo do vale inacessível, ao hotel das mil e uma noites ou ao pôr de sol único, ao meio da destruidora
tempestade ou à tasca de aspecto duvidoso. Quase sempre fazendo-nos crer que nós é que lá fomos e que
não fomos levados por elas.
Tal como as voltas do rio que
tantas vezes parece ter escolhido o caminho menos provável, também as voltas da
vida nos levam por onde querem enquanto
nos deixam acreditar em cada momento somos nós que estamos a escolher o nosso próprio caminho.
Na sua suprema ingenuidade o homem está convencido que é ele quem manda
e que todas as coisas são fruto da sua
acção consciente e criteriosa. Deixemo-lo acreditar que sim, mas nós
sabemos que são as votas da vida as responsáveis.
A António levaram-no um dia a um café de aspecto
duvidoso. Não gostou de nada no café, mas isso não impediu que em pouco tempo
se tornasse cliente habitual de um bem abastecido pequeno almoço. Nos primeiros tempos não associou o aspecto
estranho do copo do café a qualquer problema de higiene, porque simplesmente
não o associou a nada, até ao dia em
que, pela porta entreaberta o vislumbre da cozinha ecoou dentro de si como um
alerta suficientemente forte para perceber que havia ali um problema de
higiene.
O normal seria não mais lá voltar, mas a
normalidade, que não era de todo uma das suas qualidades nada teve que ver com a decisão tomada.
Durante algum tempo observou com cuidado os outros utilizadores tendo chegado à
conclusão normal que todos utilizam a chávena com a asa voltada para a direita.
Foi assim que decidiu continuar a frequentar o mesmo espaço passando a utilizar
sempre a chávena com a asa voltada para a esquerda.
Quantas vezes nos interrogamos porque é que fazemos
as coisas de uma maneira e não de outra? A mais das vezes nem nos apercebemos
da forma como as fazemos e muito menos que as fazemos sempre da mesma maneira
num processo que julgamos inconsciente, mas que é quase sempre fruto de uma
causa, de algo que em determinada fase do
percurso fez com que passasse a ser feita daquela forma e não de outra
qualquer. Sim, é verdade que tem a
importância que tem, a das pequenas coisas da vida, mas que são as grandes coisas da vida senão a soma das pequenas? Não encontraremos
aqui explicações para tantas coisas de nós que não conseguimos explicar? O que a maior parte das vezes não
conseguimos é estabelecer a relação de causa e efeito, é saber muito mais tarde quando uma qualquer contingência nos
coloca no alto da ponte prontos a saltar para o abismo, de que coisas é feita
aquela que naquele instante nos tenta impelir
com tanta determinação. Não sabemos e
bem no intimo não queremos saber.
Há coisas que só acontecem aos outros e dessas, as
boas ainda pode ser que um dia nos venham a acontecer a nós, mas as outras, as
más, essas decerto nunca nos acontecem, pelo menos até ao dia em que acontecem.
André pertencia a essa espécie intocável. Vivia todas as coisas de
forma libertária com a certeza interior que nada o afectava; cada nova coisa da
sua vida feita de muitas coisas era encarada com a sobranceria de quem tudo é
capaz e com o sentimento forte de que nada é suficientemente forte para merecer
uma paragem. Encarava a vida como um todo e utizava todos os bens que o
rodeavam de forma descartável. E não é hoje em dia tudo descartável?
Habituado a uma sociedade de usar e deitar fora
fazia exactamente o mesmo à vida que vivia de forma segmentada, usando agora,
deitando fora depois, sem rumo definido ou objectivo visivel.
O que não significa nada quanto ao seu destino,
porque como bem sabemos o que acontece na vida tem muito pouco que ver com
merecimentos e muito mais com as voltas da vida. Por isso se podemos dizer que
o destino foi traiçoeiro para si nunca poderemos afirmar que o foi porque ele
assim o mereceu, porque foi dissoluto, porque foi um reles pecador ou tão só porque cada um tem aquilo
que merece. Se é que tem!
André
carrega de há muito tempo um
insolúvel problema de consciência.
Portador de uma rara doença altamente contagiosa leva por isso uma vida de eremita, porque só o pensamento
de que possa por qualquer acto contagiar
alguém o aterroriza . Foi esse medo que o isolou cada vez mais da sociedade.
Começou a evitar todos os convites socias. Com as
recusas constantes por seu lado foi deixando de ser convidado
Os caminhos da vida, que nos levam a todos os sitios possíveis levaram
naquele dia António e André ao mesmo café de aspecto duvidoso.
André a beber pela chávena com a asa do lado
esquerdo para não correr o risco de contaminar alguém.
António a beber pela chávena com a asa do lado
esquerdo para evitar o risco de poder ser contaminado.
Passados três meses, dois dias, quatro horas e
vinte minutos António morreu de morte bem intencionada.
O Éden era um jardim que havia no paraíso e para
onde deus mandou adão e eva dizendo-lhe que podiam comer de tudo menos da
árvore do conhecimento. E o que fizeram adão e eva na primeira oportunidade?
Colheram o fruto proibido. É esse pecado original que continuamos a pagar todos
os dias, o que talvez não consigamos fazer numa só vida.
Desde o teu primeiro dia de vida.
Vi-te nascer e crescer e tornares-te
na mulher que hoje és.
Uma mulher bonita e discreta.
Mas sobretudo uma mulher que para mim não o era.
Porque para mim, durante muito tempo foste Alice.
Simplesmente Alice.
Por isso a descoberta da mulher foi tão estranha.
Durante algum tempo, mesmo desconfortável.
Deixaste de ser Alice e passaste a
ser a mulher.
É essa mulher que agora revejo à
distância de um pensamento.
A mais das vezes passavas por mim de forma invisível. Tinhas o dom de
não fazer barulho e só te via quando já estavas demasiado longe para absorver
os sabores de ti.
Conheci-te por partes.
Primeiro conheci o teu cheiro. Depois o balancear suave do teu corpo.
Mas o que me prendeu mesmo foram os teus olhos. Olhos tristes, mas olhos
promessa. De conquista. De todos os mundos conhecidos.
E foi aí que tudo começou.
Nos teus olhos.
Um dia o meu olhar demorou um pouco mais no teu. E o teu olhar demorou
um pouco mais no meu. A cumplicidade por vezes faz-se só deste ato tão simples.
Olhar. Olhar e ver.
E dentro de mim um vulcão adormecido rebentou em mil sóis de brilho e
cor.
E amor.
E gratidão.
E ternura.
E plenitude, muita plenitude como se o ar que respiravas fosse o ar que passei
a respirar e a vida não fosse mais do que manter-me quedo em contemplação de ti.
E do que precisa quem tudo tem? Nada?
Sabes o que penso mesmo da nossa separação?
Amávamo-nos tanto e demos tanto um ao outro que um dia nos descobrimos esgotados
de tanto dar. E cansados de tanta perfeição.
Nos primeiros tempos a perfeição era… perfeita. Mas com o passar do
tempo instalou-se uma monotonia tão grande que fomos incapazes de lhe resistir.
E aaproveitamos o primeiro pretexto para a destruir e voltar rápido à condição de seres comuns
capazes de falhar, emendar o erro e voltar a tentar. Foi o episódio do cheiro a
perfume. Podia ter sido outro qualquer. Sabias muito bem que não havia qualquer
cheiro e que eu te era totalmente fiel, mas era o pretexto ideal e agarraste-o com as duas mãos.
Lembras-te? Cheguei a casa, dei-te um beijo apaixonado, intenso, mas de
imediato afastaste-me com a mão.
Que cheiro é este na tua roupa? Isto é perfume de
mulher…onde é que estiveste ontem à noite? Eu? Em lado nenhum. Onde querias que
estivesse? Isso foste tu que deixaste cair do teu perfume. Eu não uso deste
perfume. Estiveste com outra. Diz-me. Quem é ela? És maluca, não estive com
ninguém. Mentiroso. Blá, blá, blá…
As mesmas palavras que enchem poemas sublimes, quando usadas da forma
errada podem ser punhais que não matam,
mas ferem de forma profunda.
E foi assim que por causa de um
simples cheiro, tudo se alterou.
Daí em diante cada pretexto servia para me tentares colocar à prova. Se
chegava atrasado tinha estado com a outra; se tinha uma conversa ao telefone em
tom mais baixo estava a falar com a
loura provocante do quinto andar; se aprimorava no modo de vestir andava a
atirar-me á nova patroa. Vivia no estado de condenado permanente.
Porque te amava segui o pior caminho. O de tolerar e aceitar tudo até me
transformar num fantoche a fingir que
vivia e era feliz, enquanto me limitava a apanhas as migalhas que deixavas
cair.
Coisa que, descobri tarde demais, acontece sempre. Pela razão simples
que de que só queremos estar onde não
estamos e a perfeição é saber exactamente onde estamos. Mesmo quando temos tudo
queremos mais mas não sabemos o quê. Por
consumirmos tudo da forma mais apressada possível na ansia de encontrar algo
que nos satisfaça. Foi assim que nos tranformamos consumidores compulsivos de
todas as coisas. Também de sentimentos, mas como não sabemos bem o que queremos
consumimos tudo em busca da coisa perfeita. E quantas vezes não descobrimos que
o que queremos é o que já tivemos? Mas como o rio não passa duas vezes sob as mesmas
pontes também a felicidade só bate á porta uma vez. Ou duas. Ou mais. Que
importa quando a maioria das vezes não bate uma única vez? Quando olhamos em
redor e vemos as pessoas em corrida desenfreada às novas catedrais, agora
chamadas centros comerciais, percebermos
que a maior parte anda perdida na vida.
Será que nós também não sabíamos para onde íamos ou foi outra coisa
qualquer?
Se queres que te diga acho que foi outra coisa. Exacto! Foi a perfeição!
A perfeição é uma doença. É assim como comer sempre a mesma coisa. Pode ser um
prato divinal. Ao fim de algum tempo continua a comer-se
mas não sabe a nada.
Mas é bom. Mas é divino. Mas é perfeito. Mas não sabe a nada.
E ao que não sabe a nada haverá sempre a tentação de tentar mudar.
Aconteceu quando Adão mordeu a maçã e quando tu inventaste que a minha
roupa cheirava a perfume de outra mulher.
Isto foi o que pareceu, mas o que aconteceu exactamente é que ambos apanharam
a doença da felicidade. De excesso de perfeição . Doença que apanhada uma vez
não tem retorno. Doente uma vez doente para sempre! Morrer de felicidade. Foi o
que te aconteceu. Não podia ser de outro modo. Amava-te tanto, tanto, tanto que
não podia ser de outro modo. Só podias ser minha. De mais ninguém! De mais
ninguém.
E agora aqui estás tu a olhar para mim com esses olhos tristes, imóvel
como só os cadáveres sabem estar.
Mas eu sei que não morreste mesmo e que daqui a instantes tudo terá
passado e voltarás a ser minha como nunca foste no passado. Vá acorda, acorda
que temos que ir àquela praia onde fomos no dia do teu aniversário. Lembras-te?
Ao fim da tarde os veraneantes foram indo todos embora e acabamos por ficar só
os dois naquele areal imenso, longe de tudo. Não sei o que nos deu para fazer
aquela loucura. Mas quando te insinuaste
junto de mim e te foste aproximando muito lentamente enquanto tiravas as peças
de roupa uma a uma fizeste surgir em mim o lado mais selvagem. De tal maneira
que quando estavas mesmo perto não te deixei acabar, rasguei o teu sutiã e possui-te ali mesmo de
forma animal e agressiva como se estivessemos no intimo do
nosso quarto em vez de um qualquer lugar
publico.
Há quanto tempo foi isso?
Há quanto tempo estamos aqui? Responde! Porque te calas? O quê? Estás
morta? Não estás nada! Vejo bem nos teus olhos que não estás morta. Estás bem
viva. Eu é que estou morto. Morto por dentro.
Oh! O que é que eu fui fazer? Eu não te queria fazer mal. Juro que não.
Foi sem querer. Se te fiz algum mal foi sem intenção.
Mas há quanto tempo estamos aqui? O melhor é chamar alguém para ver o
que se passa contigo. O quê? Estás morta? Já há pouco disseste a mesma coisa.
Mas isso não é possível. Como podes estar morta e a falar comigo ao mesmo
tempo?
O som estridente da campainha da porta fez-se ouvir de forma urgente. De
novo o mesmo som passado algum tempo. Não faças barulho para não saberem que
estamos cá. Outra vez a campainha.
Então vinda de muito longe oiço a minha voz. Não está cá ninguém!
Um estrondo enorme e a porta é derrubada por dois bombeiros que se
apressam a manietar-me e a levar-me detido. À saída ainda oiço um bombeiro a
dizer para o outro. Pelo cheiro já está morta há vários dias!
A noticia do jornal foi clara e concisa. Homem acometido de uma crise de
ciúmes matou a ex mulher com uma facada no coração e esteve fechado com ela
dentro de casa durante 4 dias. O cheiro vindo do apartamento alertou os
vizinhos que chamaram os bombeiros.
Do julgamento e condenação fica o meu depoimento.
Informo por minha honra que a
minha ex mulher, Alice de seu nome morreu de felicidade extrema com uma facada
no coração dada por mim. Mais informo que amei, amo e continuarei a amar Alice
para todo o sempre.
Palavras ditas dá um salto para o lado, rouba a pistola a um policia e
suicida-se com um tiro cabeça.
7. COLECIONADOR DE ESPIRITOS (intencionalmente interrompido)
João acordou com uma estranha sensação de inutilidade. Coisa pouco frequente.
Conhecido como um homem terra a terra pensava-se sempre indispensável e com mil
tarefas por fazer. Aliás mal acordou começou de imediato a fazer mentalmente
uma lista de tarefas para o dia de forma não só a não se esquecer de nenhuma,
mas também a executá-las da forma mais racional possível.
Detestava perdas de tempo inúteis.
A primeira tarefa era espreitar o dia e se possível a vizinha do
terceiro direito que à quela hora costumava vir à janela com a roupa com que
veio ao mundo.
O dia estava lá a nascer pujante como sempre, mas da vizinha nem rasto.
Normal. O dia nascia todos os dias mas a vizinha só acontecia de vez em
quando.
Espreitou uma vez mais pela janela mas não viu a vizinha. Não viu
ninguém.
Estranho. Àquela hora já costumava andar muita gente na rua.
Coincidências.
Tratou de si por fora. Por dentro a mais das vezes não o conseguia fazer.
Que estranho. Há muito tempo já que não passam carros. Deve ter havido algum
acidente e o trânsito está interrompido.
Tudo preparado para o dia abre a porta da rua e sai para…o vazio. É. A
sensação é de vazio. Mas é muito mais do que isso. É um vazio que pesa
toneladas.
Mas o que se passa aqui? Em todo o espaço que a vista alcança não se vê uma
única pessoa.
O acidente deve ter sido muito grande para que todos tenham ido ver.
Ainda a pensar no acidente seguiu para o trabalho, mas havia algo de
estranho no ar. Só passado algum tempo se apercebeu do que se passava. Não
havia pessoas. Estava tudo a funcionar. Havia carros nas ruas a movimentarem-se
com normalidade. Quer dizer a possível sem condutores, ainda que estivessem a
ser conduzidos por alguém porque não chocavam uns com os outros e respeitavam
os sinais de trânsito. Nos estabelecimentos tudo parecia também estar a funcionar,
porque se via todo o equipamento em ação. Se assim se pode dizer de chávenas que
andam pelo ar, de máquinas que se ligam e desligam sem ninguém lhes tocar.
Ainda atordoado e muito assustado sentiu-se o ser mais infeliz de todo o
universo.
Em boa verdade sentiu-se o único ser de todo o universo.
Foi nesse instante exato que toda a infelicidade pareceu ser exaurida,
substituída por uma calma cósmica.
No seu posto de Comandante Supremo da Luz do Universo o Magnânimo deu um
suspiro de alívio. A última alma tinha sido separada.
Já está! Agora as Trevas já não nos podem dominar!
Tudo tinha começado com algumas deslocações de um grupo de almas a uma
povoação que ficava a vários milhões de anos luz do Centro.
CORRIGIDO ATE AQUI Apesar de se tratar de um povoado insignificante à escala galáctica com
apenas dez mil milhões de almas, possuía uma percentagem avassaladora de queixas
de tentativas de migração de elementos das
forças das Trevas.
Esse grupo tinha a missão de investigar e elaborar um relatório sobre o
que estava a acontecer.
Vão ver que não passa de mais uma horda de Almas Penadas a quererem
fugir das Trevas a qualquer custo, ecoava uma Alma do grupo.
Não percebem que se entrarem pelo segmento errado só aumentam as próprias
dificuldades e a possibilidade de encontrarem o seu verdadeiro caminho, ecoa
outra alma.
No instante seguinte percorreram os milhões de quilómetros que os
separavam da povoação e estão todas a pairar em torno de uma espécie de mesa que não passa de um
holograma resultante das vontades conjuntas. Só por si este facto demonstra a importância
que dão ao assunto. Noutras situações têm
projetado cenários bem mais agradáveis como jardins à beira mar ou longínquas
estancias balneares.
Enquanto o Representante Local fazia um resumo dos últimos
acontecimentos e os seus pensamentos iam sendo absorvidos pelos restantes os
semblantes iam ficando cada vez mais
carregados.
Perceberam de imediato que o que parecia ser um simples caso de migração
clandestina era, afinal, uma tentativa de invasão planeada de forma muito
organizada.
No mesmo instante foi convocado o Conselho Supremo da Luz do Universo
que de imediato iniciou os trabalhos. Habituadas a ter muito tempo livre as
almas eram conhecidas por serem brincalhonas e estarem permanentemente a pregar
partidas umas às outras. Foi o que pensaram ainda muitas delas. Que se tratava
de uma brincadeira . Mas só até olharem
para a cara do Comandante Supremo.
Uma invasão!!
Comunicar através da leitura da mente não era fácil e muitas vezes as
almas novatas confundiam as coisas, mas as mais antigas (algumas com milhões de
anos) conseguiam leituras instantâneas espantosas. Por isso não admira que em
poucos segundos quase todos soubessem já o que se estava a passar.
Algures no mais recôndito do ponto mais obscuro do universo o
Colecionador de Espíritos, nome pelo qual era conhecido o Comandante Supremo
das Trevas, cansara-se de aliciar as
almas uma a uma e traçara um plano de ataque maciço, mas selectivo.
Quando percebeu que unidas as almas constituíam uma força indestrutível
decidiu mudar de táctica e substituir as almas que ocupavam lugares relevantes
por outras da sua confiança e assim a pouco e pouco foi aumentando o seu domínio,
que dentro de pouco tempo seria total se não a resposta pronta do Magnanimo .
No instante seguinte o Conselho Supremo da Luz do Universo iniciou uma
acção que nunca havia sequer sido pensada – separar todas as almas!
Separadas cada alma só se via a si mesmo. No principio foi engraçado ver
os seus corpos materiais primeiro atónitos depois em verdadeiro pânico quando
viam tudo a movimentar-se em redor.
As almas sabiam o que se estava a passar mas os seus corpos não.
A força das almas resultava da união de todas numa só. Com esta mudança
por um lado ficavam muito fracas e á mercê das forças das trevas, mas por outro
eram extremamente difíceis de encontrar e aquelas a quem isso acontecia eram de
imediato pulverizadas e desintegradas. Mas o que estava para…
Este texto fica intencionalmente inacabado.
Uma série de factos e coincidências levaram-me a
concluir que para especulação já basta assim.Não existiu qualquer espécie de pressão para que isso fosse feito.